'Ser escriba é comandar o mundo' - diz um papiro.
A profissão das profissões, a profissão mais cobiçada era, sem dúvida, a profissão de escriba.
O escriba poderia tornar-se uma autoridade em leis,
na diplomacia,
nos impostos, ser engenheiro,
arquiteto,
funcionário maior do Estado,
comandante,
general,
nomarca,
embaixador,
escrevente real,
procurador provincial,
médico,
sacerdote,
superintendente dos celeiros e das terras,
capitão náutico e
juiz.
Podia negociar em outras nações e mesmo tornar-se vizir de Faraó.
Alguns desposaram damas de sangue real, aparentando-se com os reis.
O artesão era incógnito e, salvo raríssimas exceções, encontramos obras assinadas.
Pintores,
pedreiros,
escultores,
carpinteiros,
cavoqueiros,
ourives,
joalheiros, eram respeitados porque ser saber era útil.
Massa para fabrico de tijolos e reboco de paredes. |
E os embalsamadores ?
Eram menosprezados e evitados.
Por que ? - sendo eles os responsáveis pela conservação do corpo para receber a vida eterna ?
Seu saber não era o mais útil serviço ao reino dos mortos ?
Cenas murais de aragem , semeadura e colheita. |
A riqueza egípcia básica sempre foi a agricultura e o camponês
"... estava estritamente ligado ao serviço e às terras do seu senhor. Não era um escravo, mas uma espécie de servo ou trabalhador contratado. Podia possuir bens e propriedades, burros e gado, comprar jóias e roupas de luxo para a esposa. Sabia o que o rei e os deuses esperavam dele"
( JOHN MANCHIP WHITE - "Everyday Live in the Ancient Egypt" ).
O camponês egípcio, idêntico ao moderno "felá", ocupava-se, na ocasião devida,
da semeadura dos campos,
da ceifa,
da debulha,
da escolha e separação dos grãos,
do armazenamento dos celeiros,
das hortas e jardins,
da vinha,
da apicultura,
da alimentação das aves e animais domésticos,
da piscicultura,
da ordenha das vacas,
do conserto de diques,
da desobstrução de canais, e uma variedade múltipla de ocupações, conforme registram os afrescos tumulares.
De baixo para cima, pintura mural com preparo da terra e aragem, colheita, debulha dos grãos, contagem e armazenamento. |
Para ceifar empregavam lâminas de sílex com cabo de madeira; molhava-se o trigo fazendo o gado miúdo pisotear as espigas espalhadas na eira.
Seus instrumentos de trabalho eram feitos de madeira, pedra e cobre.
Na maioria eram forjados e não fundidos.
Para trabalhar a madeira e pedras finas mais moles, usavam instrumentos de cobre.
Com facas e machados de cobre construíam-se barcos, charruas e outros objetos.
A picareta e o cesto para o transporte da terra eram os únicos utensílios usados na abertura de canais e barragens.
A maioria dos artesãos era do sexo masculino ; no Antigo Império somente a tecelagem era reservada às mulheres.
Excetuando-se os anos do Primeiro Período Intermediário, não temos provas de qualquer tipo de revolta de camponeses, sem contar aquela greve que já comentamos em outro artigo.
"As faltas ao trabalho eram comuns e as desculpas variadas. Os homens não compareciam ao trabalho quando suas mulheres estavam menstruadas, porque se tornavam virtualmente impuros"
( CYRIL ALDRED - "The Egyptians" ).
Escribas recurvados (em atitude de respeito) fazendo registros de decreto, com seus petrechos de escrita. |
As mais lindas maquetes sobre a vida diária egípcia estavam na tumba do príncipe MEKETRÁ, do Médio Império.
Numa delas o vizir, sentado sob um baldaquim, ajudado por secretários, inspeciona o censo dos animais de uma propriedade.
Outra maquete é um modelo de padaria : os homens moem os grãos transformando-os em farinha ; as mulheres fazem a massa. Alguns moedores e padeiros livres, instalados por conta própria, fabricam pães e pastéis para uma clientela diária.
Agora uma tecelagem : as fiadeiras, em máquinas rústicas e manuais, entrelaçam os fios do urdume e da trama para formar o tecido.
Também temos um modelo de açougue : os açougueiros retalham um bezerro. Vários pedaços de carne estão pendurados para secar ao sol.
Uma parte das colheitas era selecionada para o Estado e para o templo. A ceifa e a debulha ocupavam os agricultores por várias semanas. Neste celeiro, eles registram a produção obtida e armazenam os grãos.
Noutra maquete, os trabalhos numa marcenaria.
Prumos,
serrotes,
serras, foram guardados nas sepulturas e hoje ocupam dezenas de vitrinas no Museu do Cairo.
Eles desenvolveram muitos tipos de móveis, desde a mais remota antiguidade.
O mobiliário portátil (de montar e desmontar) da rainha HETEPHERES, esposa de SNEFRU, fundador da IV Dinastia, é um dos mais antigos (2.770 aC.).
O conjunto, folheado a ouro,compreende uma cadeira, uma cama, um porta-joias e um dossel (mosqueteiro).
A cama tem um espaldar incrustado, uma cabeceira bastante simples e as pernas representam patas de leão.
A simplicidade e a leveza do móvel contrasta com a época da edificação das pirâmides.
A liteira de HETEPHERES é também sui generis. Nas folhas de ouro gravaram o nome e títulos de SNEFRU. A madeira original estragou-se ao ponto de parecer charuto queimado. O trabalho de restauração foi completo.
Não desmentimos a existência de escravos no Egito, especialmente os vencidos de guerras.
Havia duas palavras para designá-los : 'hemu' e 'beku'.
O egípcio podia vender ou alugar o seu escravo.
Sabemos que eles existiram principalmente no Novo Império, com o grande número de prisioneiros e pessoas malquistas socialmente.
Exemplo deles foram os hebreus que fixaram-se no Egito nos tempos da dominação dos hiksos, obtendo cargos elevados na corte dos faraós hiksos (que haviam invadido e conquistado o Baixo Egito).
Deve-se esclarecer que nesse período as "Duas Terras do Egito" se dividiram :
dinastias hiksas no Norte, com sede em Aváris e
dinastias egípcias no Sul, com capital em Tebas.
Durante uns 400 anos foi assim, até que o Sul reconquistou o Norte, expulsou os hiksos e os perseguiu até o sul da Palestina.
Com o revés da moeda os hebreus, que gozavam de prestígio junto aos hiksos, foram vexados com imposições e escravidão.
Eles contaram isso no "Livro do Gênesis".
Grandioso templo edificado pela rainha HATSCHEPSUT em Deir-el-Bahari. |
As construções situavam-se na linha divisória entre a "terra negra" e o deserto.
Ao grande número de templos, palácios e cidades, acrescentamos as casas simples e as aldeias dos trabalhadores, de vida agitada, laboriosa, simples e humilde.
Aldeia de trabalhadores do Vale dos Reis, em Deir el Medina. |
Trabalhadores egípcios
( The History Channel )
Durante as celebrações religiosas havia folga.
Eram os servos homens que trabalhavam
nas minas de cobre e ouro do Sinai, do Sudão e Núbia,
que eram incorporados ao exército,
que serviam nas casas sacerdotais ou
nas propriedades particulares.
Na propriedade senhorial as moradias dos servos ou trabalhadores localizavam-se ao redor da casa principal.
Nesses domínios também havia
oficinas,
silos de armazenamento,
dispensa,
currais,
capelas,
salões de banquetes,
estábulos, etc.
Casa simples de classe pobre |
Entre os servos havia os 'escutas', que ouviam o pregão, os 'ubaú' (= copeiros), que serviam a mesa e os 'chemsu'.
"Os hieróglifos que compõe esta palavra, diz PIERRE MONTET, são representados por uma bengala, uma esteira e uma vassourinha. Assim, quando saíam de casa, o 'shemsu' estendia a esteira no chão para que seu amo não sujasse os pés e dar-lhe o bastão. Outra função era limpar os pés do seu senhor e calçá-lo".
Musicistas, trajes de linho e preparativos para festa. Tumba de NAKHT, em Sheik Abdel Qurna - Luxor. NAKHT (1428 aC.) foi importante escriba e astônomo sob THOTMÓSIS IV. |
As mulheres servas cuidavam da cozinha, lavagem de roupa, tocavam instrumentos musicais, serviam e alegravam os convidados nos banquetes.
Outras vezes trabalhavam no campo.
Muitas tornaram-se concubinas preferidas por seus senhores ; outras eram dadas como presente aos haréns dos amigos do chefe da casa.
Em geral, a mulher egípcia era respeitada.
Seus direitos de propriedade eram protegidos.
Havia o divórcio, mas não há provas de recorrerem a ele com frequência.
Escriba - Museu do Cairo. Os olhos da estátua são de cristal de rocha. |
A instrução dava a todos oportunidade de subirem na vida ; entretanto poucos pensavam na própria ascensão e um pequeno número deles chegou a ocupar bons cargos na burocracia.
Elemento importante da psicologia egípcia era a confiança, a sensação de segurança e de proteção por parte dos deuses.
Isto promovia
a confiança do indivíduo em si mesmo,
o gosto da vida e
a tolerância para as divergências na aplicação das normas estabelecidas.
" A orgulhosa superioridade sobre todos seus inimigos, especialmente no Novo Império, trouxe consequências para seu espírito católico e universal.
A psicologia animava todas as coisas universais e não traçava limites inquebrantáveis entre os diferentes estados humano e animal, vivo ou morto, humano e divino.
Para eles os vários fenômenos visíveis e tangíveis de sua existência eram superficiais e diferentes, mas essencialmente de uma mesma substância"
( JOHN A. WILSON - "The Burden of Egypt" ).
Descobriram que as coisas que se vêem - tumbas, fundações, posição social - são temporárias e que as coisas que não podem ser observadas, são eternas.
E esta foi sua grande meta obedecida.
O Primeiro Período Intermediário foi uma época democrática, de igualdade social, de justiça para todos os homens (ricos e pobres ) e de desprezo às barreiras políticas e econômicas.
Contudo, a igualdade social não significava "democracia política".
"Isto contribuiu para a formação de um Estado mais sólido, mais limpo, novo, com uma visão mais elevada do código de valores : adquiriu aspectos de igualdade social e de justiça humanitária - nessas idéias, antecederam mais de mil anos os hebreus e os gregos; por isso lhes concedemos toda a glória de tão sublime revelação.
Quando a unidade disciplinar do Estado se fez mais importante que os direitos humanos, tais conceitos desapareceram definitivamente"
( JOHN A. WILSON - obra citada ).
"Desde o começo de sua história, o egípcio manifestou um hábito notório de se limitar às fronteiras naturais, aparentando uma curiosidade muito menor acerca dos seus vizinhos do que estes por ele.
Criaram o seu próprio padrão de vida constituindo um caso separado, alheio aos outros povos.
Seu modo de vida era considerado bem superior ao das outras nações e afirma-se que foi uma das civilizações menos neuróticas do mundo"
( JOHN MANCHIP WHITE - obra citada ).
Piscicultura, açougue, colheita da uva e preparo do vinho, entretenimento familiar nos pântanos de papiros : eles abatem aves com bumerangues. Tumba de NAKHT nº TT52, em Sheik Abdel Qurna - Luxor. |
"A alegria e a prosperidade, a sua atitude otimista para com a vida, o seu gosto pelo riso e pela brincadeira eram coisas desconhecidas dos outros povos orientais"
( SALADINO MOSCATI - "The Face of the Ancient Egypt" ).
"Já não nos é possível aceitar a imagem dos egípcios como sendo uma horda de escravos, impotentes ante os caprichos de um impiedoso Faraó e dos ávidos e brutais sacerdotes.
Para o egípcio médio, os bons momentos eram em bem maior número do que os maus"
( PIERRE MONTET - "La Vie Quotidienne au Temps des Ramsés" ).
Ourives e joalheiros |
"Assim como os egípcios vivem num clima bem diferente dos demais países, e o Nilo difere também dos outros rios, do mesmo modo seus costumes e suas leis se distinguem, na sua maior parte, do das outras nações, conta HERÓDOTO.
Entre os egípcios as mulheres vão ao mercado e negociam.
Os documentos de negócios que temos do Império, demonstram que as mulheres tinham direitos próprios para possuir, comprar, vender e para testificar ante os tribunais"
( JOHN A. WILSON - obra citada ).
Você pensava que bolsa e mochila eram da nossa cultura ? |
Conclui HERÓDOTO :
"Os outros povos tecem os fios para cima ; os egípcios puxam os fios para baixo.
As mulheres urinam de pé, os homens de cócoras.
Quanto às outras necessidades, satisfazem-nas em recintos fechados.
Se os filhos do sexo masculino não querem sustentar os pais, não se vêem forçados a isso ; mas as filhas são obrigadas.
Deixam o cabelo e a barba crescer quando estão de luto.
Os outros povos amarram do lado de fora os cordões dos véus ; os egípcios, do lado de dentro.
Os outros escrevem e calculam com tentos, manejando-os da direita para a esquerda; os egípcios manejam-nos da direita para a esquerda, mas calculam para a direita.
Não há egípcio ou egípcia capaz de beijar na boca um(a) estrangeiro(a).
Não há homens mais sadios e de melhor temperamento do que os egípcios"
Alimentação de cavalos e preparativo das bigas (= 'merkebet') |
Entre os 2.200 e 2065 aC., houve um período de caos e desordem no Egito : saques a túmulos e pirâmides, queda do poder central e domínio da nobreza... uma espécie de feudalismo.
Mas os tempos mudaram ... e o príncipe MERIKARÁ, filho do rei KHÉTI II, da X Dinastia, pôde estabelecer a nova ética no Papiro de Leningrado :
'Deus criou os chefes para serem protetores dos fracos'.
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