in Revista de História - 1962, vol. XXV
Aula inaugural de abertura dos cursos da Faculdade de Farmácia e Odontologia da Universidade de São Paulo (USP), em 26/04/1962
Acréscimos de informações e ilustrações - J.Vilela
MEDICINA NO EGITO
O Egito foi um dos primeiros centros históricos da humanidade e contribuiu muitíssimo para a melhoria dos conhecimentos científicos que vinham da Pré-História. Sempre houve um progresso contínuo e acelerado nesse caminho da pesquisa e da busca da verdade.
Uma grande onda de invenções e pesquisas existiu no III milênio antes de Cristo (aC), possivelmente anterior à dinastia Tinita (3000-2778 aC), porque os dados sobre a medicina egípcia convergem para essa possibilidade.
Toda a atividade mental, física e intelectual foi fomentada e desabrochou nesse período, mas após, curiosamente, por cerca de 2500 anos permaneceu mais ou menos estática.
O comércio difundiu pela bacia mediterrânea e pela Ásia todos esses conhecimentos, contribuindo para o reerguimento do nível científico de outros povos.
Mas a influência egípcia foi mais direta e eficaz no mundo grego (cerca de 700 aC) onde a medicina chegou a realizações que em muitos sentidos não foram ainda ultrapassados.
Fato provado é que os egípcios se apegavam ao passado.
Seria por preguiça de espírito ou por veneração aos antecessores ? Esses fatores influíram, mas parece que o problema se encontrava no medo da morte, pois se inovassem ou fossem mal sucedidos, podiam pagar com a vida a ousadia. A morte dum cliente que fora tratado fora dos cânones estabelecidos podia ser considerada como homicídio.
Se aplicassem os velhos tratamentos e o paciente falecesse, era porque os deuses assim o queriam e o médico nada ficava a dever. Aliás, os médicos das peças de MOLIÈRE se comportavam da mesma maneira.
Verificamos que até o fim da autonomia do Egito imperou aí a mesma medicina e cirurgia. A arte de curar egípcia gozava de grande reputação, apesar de não ter ainda abandonado a magia e o encantamento.
Os gregos serão seus discípulos, desde HIPÓCRATES e GALENO.
"O estudo do corpo humano devia ter sido bem familiar aos egípcios em épocas bem recuadas, pois a mumificação estava seguramente em uso desde a II dinastia."
(Alexandre Moret - "Le Nil et la civilization égyptienne". Paris - 1926)
A medicina deve ter sido a mais antiga profissão.
"Quem abria os cadáveres não eram os médicos, mas os especialistas em embalsamamentos. Havia uma espécie de temor religioso que não permitia aos médicos egípcios, tanto aos seus colegas da Idade Média cristã, cortar um corpo para fins puramente científico, pois o cadáver estava destinado a ressuscitar um dia.
Seu horror por qualquer coisa que rompesse a integridade dos tecidos humanos era tão forte, que os embalsamadores eram objeto de geral execração.
Quando vinham desempenhar o seu mister eram perseguidos a pedradas e muitas vezes tinham que fugir para escapar à sanha dos perseguidores."
( Gaston Maspero - "Histoire Ancienne des Peuples de l'Orient". Paris - 1909)
Isso nos explica porque os seus livros de medicina nos parecem bem medíocres sob o ponto de vista científico. A medicina também parece um produto do Baixo Egito.
Os principais centros médicos foram os templos
de ATUM- RÁ em Heliópolis,
de NEITH em Saïs,
de ANÚBIS em Letópolis e o
de BASTET em Bubastis.
A ligação com ANÚBIS sugere que a medicina e o embalsamamento, apesar das restrições, estiveram sempre relacionados. A mumificação foi sempre um segredo ciosamente guardado e até mesmo da profissão médica.
Os médicos egípcios foram louvados por HOMERO na Odisseia, mas principalmente em HERÓDOTO que temos os mais abundantes pormenores sobre essa profissão.
É ele que nos diz que CIRO e DARIO tinham em alta conta os seus facultativos egípcios. Ele escreveu :
"A medicina no Egito é partilhada ; cada médico se ocupa duma especialidade e não de muitas. Os médicos abundam em todos os lugares : uns são oculistas, outros especialistas de cabeça, outros dos dentes, outros do ventre, outros para os males internos."
( Heródoto - "História", II - 84 )
DIODORO DA SICÍLIA entra em detalhes técnicos :
"Para prevenir as doenças, tratam o corpo com lavagens, dietas e vomitórios. Alguns empregam esse método diariamente, outros fazem uso disso de 3 a 4 dias. Dizem eles que o alimento ingerido no corpo só serve para engendrar males e o tratamento indicado tira os princípios do mal e mantém a saúde. Nas expedições militares e nas viagens, todo o mundo é cuidado gratuitamente porque os médicos são mantidos à custa da sociedade.
Eles estabelecem o tratamento das doenças segundo preceitos escritos, redigidos e transmitidos por um grande número de antigos médicos célebres.
Se, segundo os preceitos do livro sagrado, eles não conseguem salvar o doente, são declarados inocentes e isentos de culpa ; se, ao contrário, agirem contrariamente aos preceitos, podem ser acusados e condenados à morte."
OS DOCUMENTOS
CHAMPOLLION e seus discípulos só tomaram conhecimento da medicina egípcia através dos autores gregos [ TEOFRASTO, DIOSCÓRIDES, GALENO ] e somente daquilo que os helenos aprenderam no Egito, principalmente na biblioteca de IMHOTEP ( = IMOUTHES em grego), situada em Mênfis, que permaneceu de pé até o II Século aC. e onde HIPÓCRATES esteve aprimorando seus conhecimentos 7 séculos antes de GALENO.
Somente em 1875 os egiptólogos puderam fazer uma idéia concreta do real valor da medicina egípcia, graças à publicação de uma meia-dúzia de rolos de papiros provenientes na sua maioria do Alto Egito.
Vários outros rolos foram trazidos posteriormente, mas os mais importantes são os primeiros :
o Papiro de Ebers (1875),
o Papiro de Kahun (1898),
o Papiro de Berlim (1909) e
o Papiro Smith (1930).
PAPIRO EBERS
Publicado pelo próprio GEORG EBERS e traduzido integralmente pela primeira vez por H.JOACHIM (Berlim, 1890).
Esse papiro, conservado em Leipzig , pertence provavelmente à época da XVIII dinastia (escrito cerca de 1550 aC) - mas contém partes redigidas em período bem anterior.
Versa sobre produtos fármaco-terapêuticos, mas o elemento mágico é visivelmente preponderante.
Seu conteúdo em relação ao de EDWIN SMITH é bem fraco.
Escrito sem um sistema orgânico, revela poucas observações.
Algumas drogas recomendadas podem ser eficazes, mas a maioria consiste em complicadíssimas misturas de ingredientes animais e vegetais.
Enumera 100 ou mais doenças e mostra os médicos de posse de um grande número de produtos terapêuticos.
O uso franco do excremento devia provocar mais males do que benefícios e um cataplasma de ovo cru e tripa de ganso, com o propósito de refrescar o ânus, é coisa de causar espanto.
Analgésicos
Papiro EBERS
Fitoterapia
INTRODUÇÃO do PAPIRO EBERS e TÓPICOS :
'Aqui começa o livro para a preparação de remédios para todo o corpo de uma pessoa. Nasci em HELIÓPOLIS com os padres de HET-AAT, Senhores da Proteção, Reis da Eternidade e da Salvação. Sou originário de SAÏS, onde as deusas maternais me protegem.
O Senhor do Todo deu-me as palavras justas para expulsar as doenças de todos os deuses e os sofrimentos de todos mortais. '
Há uma quantidade de capítulos que falam
da cabeça,
pescoço,
braços,
da carne,
dos membros.
'Para punir os soberanos que deixam penetrar as doenças na minha cabeça, nos meus braços, no meu corpo, nos meus membros, quantas vezes RÁ se apiedou e disse:
'Eu te protejo contra os teus inimigos.
HERMES é o teu guia.
Ele te deu a palavra: ele criou os livros; ele dá glória àqueles que sabem e os médicos que seguem os seus conselhos para explicar aquilo que é obscuro.
Aquele que o deus ama, ele o faz viver.
Sou um homem que o deus amou e ele me fez viver, para dizer as palavras indicando a preparação dos remédios;
ÍSIS consinta em me curar, como curou ela HÓRUS de todos os males que lhe foram causados pelo seu irmão SETH, quando ele matou seu pai OSÍRIS.
Ó ÍSIS, tu que és grande mágica, cure-me de todas as más coisas que se precipitam sobre mim, como tu libertastes e curastes teu filho HÓRUS.'
PAPIRO MAIOR DE BERLIM
ou BRUGSH MAIOR
Está muito mal conservado.
É o mais recente e data da época de RAMSÉS II, provavelmente.
Tem as mesmas características que o de EBERS, mas a parte mágica tem visível preponderância.
PAPIRO HEARST
Publicado por G.A.REISNER ( Leipzig - 1905 ), está conservado na Universidade da Califórnia e é da mesma época e gênero que o de EBERS. Aliás, 2/3 do seu conteúdo coincidem com o texto deste último.
PAPIRO MENOR DE BERLIM
Editado por A. ERMAN ( Berlim - 1901 ).
Pertence a uma época intermediária entre o Médio e o Novo Império.
Contém fórmulas mágicas de ordem ginecológica e pediátrica.
PAPIRO EDWIN SMITH
É o mais interessante.
Foi encontrado no mesmo local que o de RHIND, mas decifrado mais tarde.
Está conservado em Nova York e foi traduzido e publicado por J.H.BREASTED ( Chicago - 1930 ).
Consta de um rolo de 5 metros de comprimento com 110 grandes colunas escritas.
Pertence ao Período dos Hicsos e se compõe de 3 partes ; as duas últimas têm um caráter mágico, mas a primeira faz um exame do corpo humano, indicando como os médicos procediam ao exame de seus pacientes.
Na época em que foi escrito, parece que os médicos tinham uma posição social muito elevada, quiçá a melhor posição como letrador e o alto funcionário da corte, conhecido como "guardião do ânus" ou "médico da barriga".
Era realmente um personagem muito importante.
O médico que o compôs devia ser um indivíduo muito vivo e observador, além de perito cirurgião, daqueles que confiavam mais na sua arte do que no auxílio da magia e do encantamento.
O tratado original deveria lidar com toda a cirurgia, da cabeça aos pés, mas o fragmento contém apenas referências
à cabeça,
ao pescoço e
ao peito.
Conhece o autor o tratamento das fraturas por meio de talas e a redução dos deslocamentos; mostra conhecimento da sutura das feridas e prevê o desenvolvimento da moléstia.
48 casos tratados na parte cirúrgica da obra :
10 observações para a cabeça,
4 para o nariz,
3 para os maxilares,
5 para a região temporal,
5 para a orelha, lábios, queixo,
6 para a garganta e as vértebras cervicais,
5 para a região escapular e clavicular,
9 para os seios e o tórax e
1 para a espinha dorsal.
Foram compilados da seguinte maneira :
Título : "Prescrições para... "
Exame : "Se tu examinares alguém tendo..." (em seguida os sintomas e terminado por) "então tu dirás... "
Diagnóstico : "Alguém sofrendo de... "
Veredito : enunciado sobre três formas -
1 = "uma doença que tratei... " ( caso favorável )
2 = "uma doença que combati... " ( caso duvidoso)
3 = "uma doença que não tratarei... " ( caso desfavorável )
Seguem as indicações de tratamento e as notas ou glosas.
Cada caso é tratado com uma ordem lógica e o autor afirma que o controle dos membros inferiores está localizado no cérebro - palavra que aparece pela primeira vez na literatura médica.
Num único caso junta-se ao tratamento científico um encantamento.
No verso do papiro existe escrito por outras mãos, algumas fórmulas de encantamentos, sob o título :
"Livro que transforma um ancião num jovem de 20 anos."
OUTROS PAPIROS
O 6º papiro da Coleção CHESTER- BEATTY é dedicado à proctologia e se assemelha ao de SMITH ao tentar adotar o autor uma atitude clínica.
Em Londres estão conservados dois pequenos papiros, mais antigos, encontrados por FLINDERS PETRIE e publicado por GRIFFITH, um deles referente à ginecologia e outro à arte veterinária, apresentando ambos um caráter muito mais racional que os acima citados.
O PAPIRO BIRCH, de Londres, também pertence à XVIII ou XIX dinastia.
O papiro veterinário KAHUN, é relativamente curto, mas duma precisão notável, além de sóbrio nos comentários. Os especialistas dizem ter sido escrito na XII dinastia.
O INICIO DA MEDICINA NO EGITO
As doenças internas eram consideradas obras de agentes sobrenaturais. Daí utilizarem-se de exorcismos e encantamentos para debelar o mal. Nesses casos não se usavam medicamentos mas fórmulas mágicas, recitadas "com voz segura e pausada".
Em alguns casos era acompanhada de uma poção, pomada, colírio, mas a cura era atribuída à palavra mágica.
A racionalização da medicina no Egito nunca foi completa e os médicos gostavam de sublinhar o valor celeste do remédio ministrado. E essa crença no poder da magia foi o perpétuo obstáculo ao progresso intelectual do Egito.
Quando se retirava o curativo duma ferida, invocava-se :
' Libertado ele foi, libertado por ÍSIS.
Libertado foi HÓRUS por ÍSIS de todo o mal eu lhe foi feito pelo seu irmão SETH, quando este matou seu pai OSÍRIS.
Ó ÍSIS, grande mágica, livrai-me, livrai-me de todas as coisas más, vermelhas, da doença de um deus e da doença de uma deusa, da morte macho e da morte fêmea, do inimigo e da inimiga, que venham sobre mim, como fostes libertada por teu filho HÓRUS, porque eu entrei no fogo e saí da água.'
Quando tomavam um remédio recitavam :
'Venha remédio, venha, tu que expulsas as coisas más deste coração que é meu, desses membros que são meus, as encantações são poderosas sobre os remédios...'
Certas doenças só podiam ser curadas pela magia : a picada de um escorpião, por exemplo, para o qual se invocava ÍSIS ou THOT, por não haver remédio para esse mal.
Os médicos
"sounu" ( aquele que corrige ) - o nome de médico era também usado pelos sacerdotes.
Nas épocas recuadas encontramos médicos reais cujos chefes eram altos funcionários e sacerdotes ( na maioria das vezes das deusas SERKET e NEITH de Saïs.
Conhecemos, pelas inscrições, Iri, médico e mágico, " Chefe dos padres de SEKMET, Chefe dos mágicos, Grande médico do rei".
Outro famoso é Ni-ânkh-Sekhmet, médico chefe do faraó SAHURÁ ( 2.250 aC ), ao qual o monarca era devedor de sua saúde e que, para recompensá-lo o mumificou e erigiu-lhe uma belo túmulo.
No inicio do Antigo Império temos referências ao "ur sunu" (= "chefe doutor" ). Um certo Khwy é descrito como " Chefe Supremo dos Médicos do Alto Egito". Era " Diretor dos padres da pirâmide de TETI" ( VI dinastia), versado em ciências ocultas.
Outro médico famoso foi Pentou, médico de AKHENÁTEN o qual "saía e entrava no palácio" e foi "o primeiro servidor de ÁTEN no templo de ÁTEN ". Seu túmulo está em Amarna ( Tel-el-Amarna, antiga Aketáten )
Os papiros indicados datam do Médio Império ou do Período Hikso e uma tradição piedosa os atribui a uma revelação divina. Quase sempre assim iniciam :
" Começo do livro de curar as doenças..." - encontradas em escrita antiga em um cofre no templo de ANÚBIS em Letópolis, no tempo de USAFIAS ( confirmado por MÁNETON). Tais são os títulos do PAPIRO DE LEIPZIG e o de BERLIM.
Ao lado dos médicos de certa categoria estavam os "Servos de RÁ" que "operam sem dor" os jovens quando da circuncisão ritual (prática considerada de grande valia para a utilidade pública ).
O médico era também chamado de "Chefe dos Segredos".
Um sacerdote, para se dar grande valor, informa : "... saiu de Heliópolis com os príncipes da Casa Grande, os Senhores da Salvaguarda, os Donos da Eternidade" e que "saiu de Saïs com as mãos dos deuses, que o tomaram sob sua proteção, para que ele pudesse destruir a doença." ( Papiro Ebers )
Em Heliópolis, no Templo de ATUM e em Saïs, no Templo de HEITH, existia ao lado da escola dos " sábios mágicos" (= casa da vida), uma espécie de escola prática de medicina, onde os jovens adquiriam conhecimentos transmitidos pela tradição. Esses médicos eram considerados como protegidos por THOT : '... que dá habilidade aos sábios e aos médicos, seus discípulos, para libertar da doença aqueles que Deus deseja manter vivo.' ( Papiro Ebers )
Quando Wesh-Ptah, o vizir do faraó NEFERKARÁ ( V dinastia) perdeu o sentido na presença do rei, durante uma visita a uma obra, foram chamados os 'padres leitores e os médicos em chefe' , que trouxeram um pequeno cofre contendo um rolo de papiro, mas nenhum socorro médico foi mais possível. Provavelmente morreu de ataque apoplético.
Quando os baixos relevos mostram um ' médico do faraó ' , nós o vemos ocupado com tarefas estranhas, pois é o encarregado da apresentação e do abate dos animais destinados aos sacrifícios, como na verificação da sua pureza. Às vezes são eles representados entre os carregadores de oferendas, com um casal de gansos nas mãos (seria o símbolo da profissão ? ).
Na sua qualidade de escribas e sábios, os médicos veneravam THOT, deus da sabedoria e dos hieróglifos. Por outro lado se colocavam sob a proteção de SEKLMET, cujo filho IMHETEP era considerado, no Baixo Império, como interventor da arte de curar.
Os médicos se intitulavam
"Chefe dos Médicos",
"Médicos Chefes",
"Médicos Inspetores",
"Médico-chefe do Sul e do Norte",
"Médico da Corte", e
"Médico Inspetor da Corte".
Segundo HERÓDOTO, Iri era médico da corte, oculista, especialista de moléstias do estômago, intestino, reto - um clínico geral. Mas havia especialistas como cirurgiões e dentistas.
Segundo CLEMENTE DE ALEXANDRIA, havia seis especialidades principais, sendo as mais importantes, pelo número de casos, a afecção dos olhos e as doenças das mulheres.
OS CONHECIMENTOS MÉDICOS
Os egípcios eram vítimas de muitas doenças.
As múmias e os papiros nos mostram casos de
tuberculose,
artério-esclerose,
cálculos biliares,
bexigas,
paralisia infantil,
anemia,
artritismo,
epilepsia,
gota,
mastoidite,
espandiomelite deformante e a
econdroplasia.
Não se notam câncer e sífilis.
Conheciam melhor o organismo humano externamente que internamente, pois não davam conta do funcionamento dos rins, por exemplo.
ANATOMIA - FISIOLOGIA - CORAÇÃO
Sabiam que o coração era o centro motor pois ele batia, falava, pulsava. Só no III Século aC., HERÓFILO DE ALEXANDRIA teve a idéia de contar as pulsações com o auxílio duma clepsidra (= relógio de água ); a teoria da circulação só foi entrevista 3.000 anos depois por DA VINCI e estabelecida definitivamente por HARVEY na primeira metade do Século XVII.
PAPIRO EBERS :
'Começo do segredo do médico : conhecimento da marcha do coração ( fisiologia ) e o conhecimento do coração ( anatomia ). Há neles vasos indo a todos os membros. Quando qualquer médico ou sacerdote de SECKMET, ou qualquer mágico coloca seus dedos na testa, na nuca ou nas mãos, ou sobre o próprio coração, ou sobre os dois braços ou sobre as duas pernas, ou em qualquer parte, sente qualquer coisa do coração, porque os vasos vão deste a todos os membros.'
Os vasos eram chamados "met" .
Havia grande discussão sobre o número deles: alguns diziam 46 e outros 22. Segundo eles, continham ar e líquidos : sangue,
lágrimas,
mucus nasal,
urina, etc.
Acreditavam que o ar entrava pelo nariz e ia ter ao coração e pulmão, daí sendo distribuído pelo organismo.
O coração fazia funcionar o corpo e ele e os intestinos eram a sede do espírito.
DOENÇAS INTERNAS - VIAS RESPIRATÓRIAS
Os médicos faziam confusão com o aparelho respiratório : chamavam "sema" todo o conjunto, não distinguindo nele o pulmão.
Para a tosse os papiros aconselhavam 21 remédios diferentes ( EBERS ) ou 18 ( BERLIM ). O mel é o ingrediente mais aconselhado ( 12 vezes ), o creme de leite ( 9 ) e o leite ( 7 ).
Um desses remédios é o seguinte :
PAPIRO DE BERLIM, nº 31 :
"Remédio contra a tosse: creme, cominho mergulhado no mel. Fazer o doente tomar durante 4 dias."
PAPIRO EBERS, nº 314 :
"Leite de vaca, alfarrobas. Colocar num vaso 'reménet', que deverá ser posto ao fogo, como se cozinham as favas. Quando estiver cozido, o paciente mastigará essas alfarrobas e as engolirá com o dito leite durante 4 dias."
Para resfriados e desobstrução das vias respiratórias emprega-se inalações de mirra, com um caniço servindo de condutor das emanações.
APARELHO DIGESTIVO
A parte que causava grande preocupação. Existe uma especial "Instrução para curar os que sofrem do estômago".
PAPIRO EBERS : ( diagnóstico )
"Se examinares uma pessoa que tenha uma constipação, a fisionomia pálida e com batidas de coração, e se a encontrares, examinando-a e verificando que tem um coração abrasado e o corpo inchado, então é um abcesso... ele comeu coisas escaldantes. Prepare então um medicamento a fim de tirar pela lavagem as coisas escaldantes e limpar os intestinos por meio de uma bebida : fazer durante a noite - macerar a farinha seca na cerveja doce, comer e beber o todo em 4 dias. Levante... cada dia bem cedo e examine o que saiu do seu ânus. Se esse... , que ele evacuou tem a aparência de caroços negros, dirás : 'essa inflamação está evacuada'... Se, após haveres feito isso, tu o examinas, e se sai do seu ânus coisas como ... então dirás que aquilo que estava em seu estômago foi evacuado."
Outros distúrbios exigem diferentes tratamentos, como o caso dos engurgitamentos.
Para as constipações intestinais já se receitava o óleo de rícino, o mel e os grãos de junco.
Conhecia-se a lombriga e a tênia, combatidas por vermífugos.
As hemorroidas preocupavam os velhos e os sintomas - pruridos, calor, dor - foram descritos nos tratados medicinais.
Os remédios para os males do aparelho digestivo eram ministrados sob a forma de
bebida,
comida,
supositório,
tamponagem,
lavagem.
Para se manterem em forma, aconselhavam o uso constante do clister.
DIODORO DA SICÍLIA escreveu :
" A fim de evitar a doença eles cuidavam da saúde do corpo por meio de beberagens, jejuns e eméticos, às vezes diariamente, às vezes com intervalos de 3 a 4 dias. Dizem que a maior parte do alimento ingerido é supérfluo e que é desse supérfluo que a doença se gera."
HERÓDOTO diz o mesmo que DIODORO SÍCULO e PLÍNIO-o-ANTIGO acreditava que o clister foi ensinado ao egípcio pela íbis - ave que se curava usando o ico como seringa.
O egípcio gozava a fama de ser o povo mais sadio da Antiguidade.
Nos papiros pouco se fala do fígado.
A incidência da icterícia era bastante numerosa e para debelá-la preconizava-se o emprego de frutas, principalmente o figo.
VIAS URINÁRIAS - GINECOLOGIA
Ignorava-se a importância dos rins mas nos papiros encontramos referências à retenção e à soltura da urina.
As receitas eram beberagens apropriadas.
Todos os papiros fazem referência à ginecologia, levando-se em conta que o casamento era muito precoce e que a gravidez era coisa extremamente desejada, sendo muitas vezes repetida.
Mas a higiene era deplorável, ocasionando graves distúrbios.
Pelo primeiro grito da criança, no parto, sabia-se da sua viabilidade: se ela gritasse "ni" , viveria ; mas se gritasse "mibi" , era certa a sua morte.
Reconhecia-se o valor do leite materno na alimentação e para obviar os gritos sucessivos, usava-se uma mistura de bagas da planta "schefen" ( papoula ) e o inevitável excremento de moscas.
Nos papiros encontramos também referências às parteiras, cosméticos para embelezar a pele, os cabelos, as mãos.
CABEÇA - CRÂNIO
Uma das partes mais bem conhecidas, explicado facilmente pelas guerras, por serem os ferimentos na cabeça extremamente numerosos.
Para as cefaleias recomendava-se unguentos e fricções.
A calvície era comum [ múmias e estátuas de NEFERTARI, RAMSÉS II e AMENHETEP III ] e causava preocupação.
Para combatê-la havia receitas complicadas, como o unguento de gordura de leão, hipopótamo, crocodilo, gato, serpente e bode.
Uma outra, da época da V dinastia, era composta de pomada de caroço de tâmara, patas de cão, casco de burro, tudo cozido em azeite.
Receitas haviam muitas e, como atualmente, ineficazes. Eram os calvos tão abundantes como o são hoje em dia.
A pelada também era comum e tratada mais pela magia.
O embranquecimento do cabelo preocupava os elegantes e acreditava-se que para curá-lo devia-se usar uma mistura de sangue de boi negro com azeite.
A cabeça continha os "sete buracos" :
narinas,
ouvidos,
boca e
olhos.
O nariz quebrado era tratado pela cirurgia.
Os ouvidos eram muito importantes, pois o "sopro da vida o ouvido direito".
PAPIRO EBERS :
" Se encontrares uma pessoa que tenha inchaços na nuca e que tenha dores de cabeça, cuja co vertebral está tesa, e que a nuca é pesada e que não pode pousar seu olhar sobre seu ventre, neste caso diga : 'ele tem inchaço na nuca'. Faça com que ele se unte e que se pinte de maneira que esteja bem".
ODONTOLOGIA
Os dentistas ( "sunu ibih" ) tinham muito trabalho.
Nas múmias encontramos sinais evidentes de
abcessos alveolares,
piorreia,
cáries dentárias - que aumentaram muito com a evolução e refinamento da civilização.
Fazia-se obturações com um cimento oriundo de um elemento mineral, provavelmente lascas de pedras, "terra da Núbia, crisocola ou tincal, tudo pulverizado, triturado e misturado com farinha de espeita, resina e terebinto, mel e água " ( PAPIRO EBERS ).
Além das obturações encontrou-se numa necrópole dois dentes postiços ligados por um fio de ouro, sendo que um deles tinha sinais evidentes de piorreia.
Os dentes postiços também são encontrados.
Discute-se se os egípcios extraíam dentes ou não.
A resposta é mais afirmativa que negativa.
OFTALMOLOGIA
Sempre foi um dos sérios problemas enfrentados e ainda o é no Egito.
No PAPIRO EBERS existe um "Tratado dos Olhos", com uma centena de receitas. Conheciam
a pupila,
a esclerótica,
as pálpebras,
os cílios e as sombrancelhas, mas ignoravam a estrutura interna do olho :
a conjuntiva,
a córnea,
o cristalino, etc..
Os remédios utilizavam
o olibano,
a crisacola,
farinha de coloquinta,
folha de acácia - sob a forma de compressas e colírios.
O tracoma era endêmico e ainda hoje é conhecida como "oftalmia do Egito".
Contra ele usavam "bílis de tartaruga, ládano ( goma da sestevas ) ou ainda galeno, ocre amarelo, terra da Núbia, natrum vermelho".
As cataratas não eram operadas.
CIRURGIA
O PAPIRO EBERS serve de base para se avaliar o conhecimento dos cirurgiões.
É um tratado de 48 tipos de feridas, lesões ósseas, articulações...
As mais comuns são as
contusões das vértebras,
luxação do maxilar , a
perfuração do crânio,
fraturas do nariz, do maxilar , da clavícula.
Para a fratura do maxilar usava-se um penso com mel e um mineral - "imrou" (desinfetante ? ).
Para as feridas, tampões com tiras de linho e bandagens, além da competente sutura.
Para as fraturas da coluna colocava-se o paciente imobilizado e com dois pequenos muros de tijolos sob as axilas, sendo alimentado por intermédio de um tubo. Ainda hoje usa-se a imobilização dessas fraturas.
instrumental de medicina |
FARMACOPÉIA
É julgada com pouca benevolência.
Os ingredientes, drogas, perfumes, unguentos, pomadas, poções, cataplasmas, clisteres, supositórios, etc., são bem exóticos.
Exemplo : água suja de lavagem de roupa para dores da nuca e dos olhos ; excremento de pelicano ou de crocodilo para a cura da catarata. ( NORMAN - "Medical History of Contraception" )
HIPÓCRATES usava perfumes onde eram usados excrementos.
O PAPIRO EBERS arrola 700 drogas que serviam para tudo, desde mordedura de cobra até febre puerperal.
O PAPIRO KAHUN prescreve supositórios aparentemente usados para evitar a concepção.
Tinham drogas idênticas às usadas hoje em certos
contraceptivos.
O túmulo duma rainha da XII dinastia tinha uma caixa de remédios com
vasos,
colheres,
drogas secas,
raízes.
Eram usadas drogas desde sangue de lagarto até livro velho fervido em azeite, leite de mulher que dera à luz, urina de mulher virgem ( WILL DURANT )
As receitas variavam com a idade e sexo e conforme a estação do ano.
Em todas elas existe sempre
o mel,
a cerveja,
o azeite.
Alguns remédios são recomendados pela sua antiguidade; outros por serem estrangeiros.
Os remédios eram considerados como tendo sido inventados pelos deuses, principalmente por RÁ.
As receitas tinham um título, como "Meio para tirar o sangue da ferida", seguido da composição e a indicação das quantidades :
" cera ............................ 1
gordura ..................... 1
vinho de tâmara ....... 1
mel .......................... 1
trigo cozido ............... 1
Os medicamentos eram ministrados sob a forma de
poções,
pílulas,
fricções,
cataplasmas,
inalações.
Alguns desses medicamentos passaram para a farmacopeia grega e através das obras de HIPÓCRATES e DIOSCÓRIDES , passaram para a romana e chegaram até nós pela Idade Média.
Os ingredientes oriundos da flora são numerosos, desde ervas, raízes e cascas, folhas.
Citamos :
acácia,
cicômoro,
tamareira,
alfarrobeira,
zimbo,
romeira,
figueira,
papiro,
melão,
punça (giesta),
cereais (trigo, espeita, centeio, cevada, milhete).
Tudo usado sob forma de cascas, folhas, grãos, frutas, goma, suco, vinho.
Destacamos o óleo de rícino.
PAPIRO EBERS :
" Catálogo dos usos da planta degam (= mamona).
Se suas hastes forem batidas na água e friccionadas sobre uma cabeça que sofre, ela logo será curada, como se jamais tivesse estado doente.
Se alguns poucos grãos forem mastigados com cerveja para uma pessoa que se constipou, ela expulsará os excrementos do corpo dessa pessoa.
Os cabelos de uma mulher serão também dispostos a crescer por meio desses grãos. Moa-os, misture-os em uma massa, aplique-os com gordura - untar a cabeça com ela.
Um óleo é também preparado com seus grãos, como unguento para as chagas que desenvolveram um mau corrimento. A dor desaparecerá, como se nada houvesse acontecido. Deve ser empregada como unguento durante 10 dias, untando cada , até que o corrimento seja expelido. Experimentada milhões de vezes. "
Do reino animal entranhas de diversos animais :
fígado,
coração,
bílis - assim como pelos, chifres, cascos e patas.
Também usavam
bílis de boi, tartaruga, cabra, porco ;
fígado de boi, asno ;
gordura de leão, crocodilo, hipopótamo, gato, serpente, bode, boi, ganso ;
sangue de boi, asno, porco, cão, cabra, lagarto ;
leite de vaca, de mulher ;
mel,
cera ... etc.
Do reino mineral os boticários usavam
arsênico,
cobre,
alabastro,
petróleo,
sílex,
crisacola,
silicato de cobre hidratado,
galena ou colírio negro (= sulfato de chumbo),
sal,
salitre,
pedra menfita ( "aner sopdou" ).
Tudo em forma de pó moído.
O combate aos insetos não foi esquecido.
Para evitar as pulgas regava-se a casa com uma solução de natrum (= soda natural) ou espalhava-se a planta "bebet" triturada e misturada com carvão de madeira.
Contra a picada e mosca usava-se gordura de ganso.
Um peixe seco, ou um pedaço de natrum da toca duma serpente era muito eficaz.
Contra os ratos aplicava-se gordura de gato - mas o melhor era excremento de gazela, no fogo, para fazer fumegação.
VÍDEO : "O Egito Antigo e a Medicina Moderna".
por The History Channel.
Assuntos :
instrumentos cirúrgicos
analgésicos
o papiro EBERS
fitoterapia
o papiro EDWIN SMITH
trepanação
prótese
olhos
dentes
contracepção
teste de gravidez
coração e mente.
http://www.youtube.com/watch?v=7bFM-Lk-CFo
CONCLUSÕES
Alguma coisa da farmacopeia ficou até nós.
Por exemplo citamos o rícino.
O sangue e excrementos foram empregados na Europa da Idade Medieval.
Os coptas e chineses ainda os utilizam.
A palavra 'química' deriva de "kemi".
Daí o árabe 'kimiya' pedra filosofal), donde 'alquimia' e mais 'arte química' .
( ANTENOR NASCENTES - "Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa" - Rio, 1932 ).
Nas cirurgias, como vimos, conheceram
a circuncisão,
a castração e
extrupação de tumores ;
desenvolveram até certo grau a ginecologia e obstetrícia (ciência dos partos).
Utilizaram purgantes, sangrias, pílulas, clisteres, supositórios, cataplasmas ...
Drogas, perfumes, unguentos eram fabricados nos laboratórios dos templos, mas caíram pouco a pouco no domínio público.
Palestra dos irmãos Vilela
in
"Mumificação e Medicina no Antigo Egito" - Revista Paulista de Medicina, maio-junho,77 / vol. 89 / nº 5-6 / págs. 115-124. Ilustrações de Eduardo Vilela.
Assista o filme "O EGÍPCIO".
Baseado na obra de Mika Waltari, ele descreve a vida de um médico, SINUHE, que viveu na época de AKHENÁTEN.
É muito interessante e ilustrativo.
É o único filme sobre o antigo Egito que fala sobre a Medicina.
http://www.youtube.com/watch?v=6QGrqYm4GVs
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